Frei Fernando Ventura , Sagrado Coração de Maria- Carvalhos-Pedroso
“Não devemos ter vergonha de dizer Eu Gosto de Ti!, não devemos ter vergonha de dizer Eu Te Amo!” “A pior das solidões e o mais negro dos fados não é o poder sentir, com mais ou menos verdade, que ninguém gosta de nós; é, pelo contrário, sentirmos que não somos capazes de gostar de ninguém!” “O maior pecado que nos atormenta, aliás, o único pecado que somos capazes de cometer, é o da negação do amor!” Estas foram as ideias-força e as palavras-chave de Frei Fernando Ventura na conferência subordinada ao tema “Do Eu Solitário ao Nós Solidário – Apocalipse(s) da História”, proferida Perante uma numerosa assistência constituída por alunos, docentes e público em geral que encheu por completo o auditório desta instituição de ensino superior e num discurso cativante no Santuario do Coração deMaria_ Carvalhos, que prendeu a atenção da plateia durante todo o tempo que durou a prelecção, o consagrado especialista em assuntos bíblicos, cidadão do mundo e auto-considerado “cigano do Deus cigano”, convidou a fazer uma reflexão conjunta sobre alguns dos problemas que afectam a vida actual e apontou alguns dos caminhos a seguir para encontrar o sentido da vida actual na passagem privilegiada do “eu solitário” ao “nós solidário”, um exercício de profundo compromisso de comunhão e equilíbrio pessoal de intimidade de nós com os outros, um exercício de procura do tal “código secreto” de “gente que se relaciona com gente” na procura incessante da felicidade. Tendo começado por desafiar cada um dos presentes a sorrir para quem estava a seu lado e a dizer-lhe “eu gosto de ti!” e “eu te amo!”, Frei Fernando Ventura assentou a sua prelecção na constatação de que temos vergonha de dizer ao outro que gostamos dele e que o amamos. “Matamos as palavras mais belas e nobres!. Atrofiamos o espírito!”Que pena…que pena termos vergonha de dizer ao outro “eu te amo!” referiu. Para Fernando Ventura vivemos um tempo marcado por um grande afastamento egoísta entre o “Eu” e o “Nós”, um tempo em que a “doce solidão solteira da indiferença” marca as nossas relações, não havendo lugar para a solidariedade. Por muito que nos consideremos “pecadores”, capazes de cometer um sem número de “pecados”, devemos entender que não somos capazes de cometer senão um único pecado, precisamente esse pecado originante e não originário que está na base de todas as discórdias, desencontros e desequilíbrios: o de querermos ser Deus diante de Deus e diante dos outros. Tudo o resto não passa de “peneiras” místicas, considerou. Para Fernando Ventura é aqui que reside o porquê dos conflitos, das guerras, dos sacrifícios de tantos inocentes, do sofrimento da humanidade destinada a viver no paraíso e não ser capaz de experimentar nada mais do que viver no inferno. Todos pensam que o “pecado” da humanidade anda em redor da cintura, nada de mais errado, afirmou. O grande pecado do homem, razão de todos os desequilíbrios, está do pescoço para cima, ao contrário do que nos indica a fábula da criação, no texto que descreve o Éden, que situa a base da explicação no designado “pecado original”. Não foi por comer a maçã que o Homem pecou!! O Homem pecou e perdeu o paraíso não por ter ou não ter comido a maçã (que até era um fruto inexistente, à época, na região) em resultado da gula humana. O Homem peca e perde o paraíso precisamente devido a essa vontade humana da qual nunca nos libertamos, a esse complexo de Édipo nunca resolvido, a essa necessidade de ser como Deus, de substituir Deus, em última análise, edipianamente, de “matar Deus”. Mais do que falar simplesmente de um “pecado original”, mais do que um gesto de desobediência que, em resultado da gula humana, levou a morder a maçã, Frei Fernando Ventura defende que o que temos no relato do Génesis é uma constatação profunda da nossa existência, incapaz de encontrar equilíbrios porque sempre levada a assumir atitudes e comportamentos “reservados” ou “preservados” na relação com os outros. Encaramos a relação com os outros como se tivéssemos um preservativo enfiado da cabeça aos pés, afirmou. É a autoconsciência da transgressão que não deixa a humanidade em paz. Mais do que o castigo de um Deus irado que expulsa do paraíso, estamos perante uma situação de desequilíbrio pessoal tridimensional: o “eu”consigo próprio, com o outro e com Deus. Na opinião de Fernando Ventura, não estamos perante um Deus zangado e de relações cortadas com a humanidade, mas antes de uma humanidade de relações cortadas consigo própria e com Deus., logo uma humanidade em pecado. Continuando a recorrer ao livro do Génesis, Fernando Ventura utilizou a história de Caim e Abel, descendentes directos de Adão e Eva, dois irmãos em conflito, logo também em situação de desequilíbrio, para representar a violência que caracteriza a humanidade actual. Após assassinar Abel, o senhor de tudo que mata aquele que é nada, Caim ouve a seguinte pergunta de Deus: “Caim, que fizeste do teu irmão?”, à qual respondeu: “Eu não sou responsável (shomer) pelo meu irmão!”. Para este consagrado especialista em assuntos bíblicos, há uma gritante actualidade nesta resposta de Caim, apesar de ter já 2.500 anos, e na qual residem muitas explicações para os conflitos dos dias de hoje, sobretudo se considerarmos que o significado do vocábulo original hebraico shomer, encerra um conceito que supõe uma relação efectiva e afectiva profunda entre dois seres, uma relação afectiva da parte de alguém que cuida de outro não por obrigação mas por amor. Para Fernando Ventura, vivemos um tempo em que a história não nos toca e nós não tocamos a história!! “A história dos novos e a experiência dos velhos não se encontram!!”. Um tempo em que abundam as opiniões mas faltam as ideias, um tempo em que se apela a não “fazer ondas” porque pode levar ao afogamento dos outros ocupantes da piscina que têm a água pelo queixo. É urgente recuperar a autonomia do pensamento, o sentido de crítica, pensar o sentido da vida, da história, do tempo, da eternidade, e de nós na relação com os outros, defendeu. Alguém que se recusa, pelo menos, a reflectir sobre as suas próprias convicções é alguém que, simplesmente, se recusa a existir, asseverou. Afirmou, por outro lado, que estamos demasiado habituados e desgraçadamente treinados a fazer juízos de valor sobre o valor dos outros, de cima para baixo, do alto das nossas convicções inexpugnáveis, para o baixo do “outro”, do diferente, do que não é como eu, em última análise do “coitado”, que não chegou ainda à altura do meu valor… Pobres tontos que somos…não entendemos que é precisamente isto que nos mata; não percebemos a urgência da viagem ao contrário, da viagem feita não em “solitário” mas em “solidário”, não contra ninguém, mas com alguém, em última análise com todos, esses mesmos que partilham o nosso mesmo tempo e a nossa mesma história; esses mesmos que à luz da religião balofa são diferentes, mas que à luz da fé são simplesmente iguais, irmãos, gente que se relaciona com gente, também ela à procura da sua estrada, do seu caminho, de si própria, da sua felicidade e sentido de vida. A tomada de consciência serena da complementaridade do outro e dos seus valores é, segundo Fernando Ventura, o ponto de partida que nos pode levar muito longe. Um dos segredos da revolução da fé passa por aqui, por este que é o único dinamismo capaz de curar os dramas das solidões existências do nosso tempo. Só deste modo será possível levar à falência os fabricantes de antidepressivos porque teremos encontrado, finalmente a nossa razão de viver, um sentido para a vida. “Metade do mundo está louco e a outra metade anda a tomar pastilhas!!” Até lá chegarmos, será necessário esperar. Esperar que os tempos amadureçam, esperar que os solitários e egoístas se convertam em solidários. Esperar que a “doce solidão solteira da indiferença” deixe de caracterizar as nossas relações. “Doce solidão solteira” que não tem nada a ver com qualquer estado civil, mas sim com um estado mental. Trata-se de um estado de alma, uma atitude interior de tanta e tanta gente a quem apetece dizer “Pega nas tuas brasas e vai fazer o inferno para outro lado…” Fernando Ventura alimentou a ideia de que é possível entender a urgência do tempo novo e as urgências dos novos tempos. A urgência de criar uma atitude relacional nova, capaz de criar criaturas novas, capaz de produzir a revolução de que o nosso tempo tem necessidade desesperada. É disso mesmo que se trata, de uma autêntica revolução! É disso mesmo que se trata, de agitar as massas! É disso mesmo que se trata, de desinquietar consciências…! reforçou o mesmo orador. Um dia haveremos de descobrir a paz!! Mas, entretanto, é preciso deixar os deuses em paz para encontrar a paz dos deuses e, se calhar, em última instância, o “Deus da Paz”, referiu Frei Fernando Ventura. Há que recomeçar com critérios novos, capazes de abrir novas perspectivas e capazes de vencer as nossas solidões. A pior das solidões e o mais negro dos fados não é o poder sentir , com mais ou menos verdade, que ninguém gosta de nós; é, pelo contrário, sentirmos que não somos capazes de gostar de ninguém!! A chave da questão, segundo Fernando Ventura, é a da negação do amor: o maior pecado que nos atormenta, aliás, o único pecado que somos capazes de cometer, é o da negação do amor!, afirmou. É triste chorar porque se ama, mas o maior pecado, e pecado grave, é não amar para não chorar. Para Fernando Ventura devemos estabelecer relações de intimidade fecunda com toda a gente, todos os dias…pois o nosso drama é mesmo este: o de vivermos “preservados” nas nossas relações com os outros. Quantas barreiras construímos! Quantos obstáculos colocamos! Conseguimos chegar aos outros planetas mas não somos capazes de “aterrar” no planeta do outro, nem permitimos que os outros cheguem até nós… O resultado é aquele que já sabemos: celibatários amargados, isto é, solteirões, independentemente do estado civil. Importa, por isso, “desembrulhar” muita coisa… se calhar, importa começar por nos desembrulharmos a nós próprios dos rótulos, dos títulos, dos penachos mais ou menos vistosos com que nos enfeitamos ou com que os outros nos enfeitam. Vivemos uma cultura pequenina e de pequenez que valoriza mais o embrulho do que a prenda… valorizamos mais a forma e não o fundo, o que enche os olhos e não o que pode preencher os vazios da alma. Referiu Fernando Ventura que daqui, o que sobrou e sobra são só ruídos, que impedem e prejudicam a comunicação. Afirmou que é esta sociedade de ruídos solteiros, bacocos, macambúzios, que anda à procura de si própria, dos seus “porquês” e “para quês” num frenesim de galinha louca que cacareja desesperada, mas não consegue encontrar poleiro onde assentar… que nos cabe desafiar para a revolução. Fernando Ventura desafiou a assistência a fazer a revolução, tendo, para tal, recorrido às conhecidas Bem-Aventuranças do capítulo 5 do Evangelho de S. Mateus e do capítulo 6 do Evangelho de S. Lucas, as quais considerou como a Carta Constitucional do Cristianismo. Começou por advertir para o perigo de que uma interpretação errónea das Bem-Aventuranças poder conduzir a dar razão a Karl Marx que defendia a ideia de que a religião era o ópio do povo, ou então a dar razão a Freud que falava da religião como sendo uma neurose colectiva. Pior ainda do que tudo isto para Fernando Ventura é que com o texto das Bem-Aventuranças é possível fazer o que classificou como verdadeiro terrorismo religioso e fazer aquilo que a nenhum cristão deverá ser permitido, ou seja, ser um profissional da esperança adiada. Fernando Ventura considerou que o maior perigo encontra-se precisamente nisto: resignação e adiamento. Resignação diante da vida …adiamento da esperança. Sofre? Vê os seus direitos violados? Passa fome? Não tem o mínimo com que viver com dignidade? Sente-se só e abandonado? Tenha paciência porque essa é a vontade de Deus…e na eternidade vai ser muito feliz (!) Fernando Ventura considerou ser este o adiamento pecaminoso, opiáceo, neurótico e estúpido da esperança. É este, infelizmente, ainda o discurso frequente de algumas “mentes piedosas da nossa praça”. Ainda que não se digam de viva voz estas barbaridades, pensam-se, e formam um quadro de pensamento e de reflexão que pode levar à caridadezinha pacóvia, mas que nunca levará à solidariedade revolucionária de que o nosso tempo precisa. Não podemos ser profissionais da esperança adiada!! Não podemos insultar os pobres em nome de Deus, muito menos a partir da nossa abundância, qualificar a miséria dos outros como determinação de Deus e condição sine qua non para um futuro de felicidade eterna. Isto é um insulto, isto é terrorismo , mas isto faz-se, desgraçadamente, afirmou convicto Fernando Ventura. Segundo Fernando Ventura, o desafio final continua a ser o mesmo, perturbador e desinquietante, que empurra para a vitória sobre a esquizofrenia que nos leva a querer ser Deus sem ser dos outros; a viver o divórcio da vida dentro de um pseudocasamento com Deus…marcado por sucessivas e cada vez mais fundas “facadas no matrimónio”. Não faz falta o penacho…faz falta o coração!! Para Fernando Ventura esta será a chave da leitura das Bem-Aventuranças que considerou como o texto bíblico mais perigoso e revolucionário da história da humanidade. “Uma religião é isto mesmo. Um desafio à liberdade, um “murro no estômago” do comodismo que não obriga nem sequer a pensar porque tudo está já dito e pensado por outros…e eu não tenho mais que me conformar com o que “sempre me ensinaram” porque é assim, pronto, porque é…que chatice!!” Esta é a tal religião ópio e neurose nas palavras de Marx e Freud, respectivamente, afirmou Fernando Ventura. Invocando o pensador Agostinho da Silva, retomou a afirmação “Eu não tenho uma religião; há uma religião que me tem a mim” e considerou que quanto mais gente for capaz de viver coerentemente o significado pleno desta afirmação, mais longe estaremos de uma religião de solteirões e solteironas amargados e amargadas com a vida e com os outros e mais encontraremos gente, dessa tal que é capaz de amar todos os dias, toda a gente, porque perdeu o medo e foi capaz de ressuscitar as palavras mortas e que sabe perfeitamente o que quer dizer “fazer amor”. Para Fernando Ventura, só somos capazes de chorar em duas ocasiões: quando sentimos alegria ou quando sentimos tristeza. Recorrendo à conhecida expressão “Quem não chora não mama”, Fernando Ventura considerou que, em última análise, só há realmente um único e verdadeiro motivo capaz de nos fazer chorar: o amor. “Quem não chora não ama!”, “Quem não ama não chora!”, afirmou Fernando Ventura jogando com as palavras. Bem-Aventurados vós que chorais porque sois Bem-Aventurados vós que amais, que sois capazes de ter e construir relações com alguém, que vos recusais a viver orgulhosamente “solteiros”, que sois capazes de “fazer amor” com os outros e com a vida…que não viveis a fazer meditação transcendental a olhar para o umbigo… que não vos contentais com pias elucubrações místico-solitárias… referiu o ilustre orador. Fernando Ventura exortou: “Não tenhais medo!!”, pois não obstante outro provérbio português ensinar que “quem se sujeita a amar, sujeita-se a padecer!”, nunca ninguém disse que seria fácil, mas também nunca nenhum dos que se atreveram a viver assim disse que não era compensador. Para Fernando Ventura, o grande conceito central do desafio da mudança está traduzido no conceito inerente à palavra SHALOM que, para além de se referir à ausência de guerra é, em si mesmo, um conceito de plenitude englobante de todas as dimensões da vida, e das relações de cada um consigo mesmo e com os outros. Segundo Fernando Ventura, trata-se de um verdadeiro desafio à construção do futuro, da construção de um paraíso que nunca existiu mas que toda a humanidade está chamada a sonhar e a construir. Este sonho de plenitude de equilíbrio consigo mesmo e com os outros, de gente que gosta de se relacionar com gente, está presente em todas as culturas, tempos, povos e civilizações, quer se chame paz, shalom, salam, morabeza, nirvana, pankasila, metempsicose, shanti, estaremos sempre diante deste desejo inscrito no mais fundo do código genético da humanidade, afirmou Fernando Ventura. Para atingir o sonho da plenitude de equilíbrio, Frei Fernando Ventura apontou o caminho recorrendo ao princípio dos três “Rs” da reciclagem: Reduzir o ódio, Reciclar o mau feitio, Reutilizar a capacidade de dizer “Eu gosto de ti!”. Para Frei Fernando Ventura, esta é a chave, o “código secreto” para vencer a crise de que tanto se fala e que nos aflige. Que não é uma crise de valores, que não é uma crise económico-financeira, mas que é uma crise da Humanidade, concluiu. O factor tempo não deu para mais, visto termos a Eucaristia as 19 horas.